Conheci gente com Natais assim...

Recebi da minha colega Cristina este lindo conto de Natal de Aquilino Ribeiro que, apesar de um pouco longo, deixo aqui:

 

« […] Como aquela fosse uma noite muito santa e muito álgida – o Salvador ia nascer nas palhas para lembrar aos homens que vêm do nada e para lá caminham – mãe e filha se deixaram ficar ao lume, tão perto, que a chama do toro de carvalho, reatando-se de pois de sopitar, alumiava mais que a candeia. A Mãe no seu luto de viúva, chaile (sic) roto pelos ombros, mal tinha acabado de espiar a roca e cismava; a pequena, dez anos espertinhos e medrados, com um pauzito ia atiçando o fogo, entretida a ver dançar e rodopiar os mil fogaréus da combustão. De repente, quebrando o devaneio, disse para a mãe:
− Porque é que uns são tão ricos e outros tão pobres?
− Porquê?… Fazes cada pergunta! Olha lá, os dedos da mão são todos iguais?
− Ó mãe isso não quer dizer nada. Os dedos são desiguais, não há dúvida, mas entendem-se todos muito bem uns com os outros. E que tem lá que sejam desiguais se o sangue é o mesmo, pois não é?
A mãe não soube ou não quis contestar e ouviu-se lá fora o tropel da rapaziada que preparava a fogueira do Natal naquela noite tão luminosa que, não obstante a luz da candeia, uma réstia de luar atravessava o telhado de telha vã e vinha bater no frontal como uma lança.
− Sabe, mãe, a Zezinha da Casa Grande chamou-me quando meti o gado. Só queria que vomecê visse as coisas bonitas que lá tem. Uma riqueza! E espera mais, muitas mais, que lhas há-de trazer o Pai Natal. Armaram um pinheiro no meio da sala, com muita velinha, muita velinha e neve a fingir, só para pendurarem as prendas. O Pai Natal vem de Lisboa e Paris, carregado, carregadinho que não pode com mais às costas. É verdade, mãe, que quem o manda é o Menino Jesus?
− É verdade. O Menino Jesus enche-lhe os taleigos e diz-lhe: toca, vai levar…
− Mas ele só vai levar aos ricos? À nossa casa não vem?
− Não querias mais nada?! Ele só anda pelas casas fartas, asseadas… muito branquinhas, e hão-de ter chaminé. Não sei se sabes, ele vem pela chaminé.
−Também me disse a Zezinha que vinha pela chaminé. Por causa disso pôs um sapatinho na pedra do fogão para começar logo por ali. Diz ela que no sapatinho lhe há-de deixar uma prenda que não pode adivinhar o que seja, mas que é a mais bonita e a mais cara de todas. Ó mãe, se eu pusesse a tamanca bem estateladinha aqui à lareira, onde se visse, talvez ele me deixasse lá qualquer coisa…
−Não vês que a casa não tem chaminé…
− O Pai Natal podia vir pelo telhado e levantar uma telha…bater à porta…
−O Pai Natal não bate às portas. É como o vento. Bota-se a caminho e, pronto, está logo chegadoç Se quisesse, entrava pelo buraco da fechadura. Connosco pouco adiantava. A nossa porta nem chave tem. Basta o cravelho, não há cá que roubar. Mas, como te digo, o Pai Natal do que mais gosta é de descer pela chaminé. É para que saibam que vem do céu, à ordem do Menino-Deus…
− Ó mãe, mande pôr uma chaminé na nossa casa, mande! Queria tanto que o Pai Natal cá viesse…!
−Estás na lua. Uma chaminé é para quem é. Custa dinheiro. Onde o tínhamos nós? […] »

 

Aquilino Ribeiro in "Sonho de uma noite de Natal"

 

Reli-o hoje, manhã de Natal de quem há muitos, muitos  anos foi uma menina "rica" como a descrita por Aquilino Ribeiro.

 

Depois... depois cresceu e pensou... depois, passou a sofrer intensamente daquilo que os ingleses chamam de "Christmas blue" e a ser menos crente!!

publicado por naterradosplatanos às 18:49 | link do post | comentar